quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Sobre crenças e porque falar de ateísmo

Texto de Leon Sampaio


Acho que se investigarmos a razão das pessoas se afiliarem às religiões, pelo menos aqui no Brasil, a conclusão provável é que uma imensa maioria simplesmente foi doutrinada quando criança pelos pais. É muito difícil estarmos dispostos a reavaliar seriamente nossas crenças depois que passamos por isso, porque é um momento em que ainda não temos um senso crítico apurado, e confiar nas informações que nos são dadas (especialmente pelos pais, que geralmente têm as melhores intenções) é importante para a nossa integridade. "Não ande descalço", "não corra", "não pule a janela", "coma brócolis", "Deus tá te vendo", tudo no mesmo pacote.

No fim das contas, ser crédulo, nesse ponto, é uma vantagem tanto para a criança quanto para os pais, que se livram de um pouco da sua responsabilidade ao passo que ganham como aliado uma "babá" onipresente e onisciente que fiscaliza se a criança está andando na linha.

Essas informações viram parte de quem somos, mas é inevitável que em algum momento da nossa vida nos questionemos sobre a veracidade de cada uma delas. Algumas são corroboradas (e outras, derrubadas) por nossas experiências/observações do mundo, mas, para um cidadão médio, uma afirmação em especial acaba por não ter nenhum dado relevante a considerar, e essa dúvida pode causar muito mal estar: Há ou não há um deus?

O próprio ato de questionar, considerar por um breve momento que deus não existe, tentar se despir dessa crença tão primordial para avaliar com mais imparcialidade essa hipótese, já é – pelo menos nos 3 maiores monoteísmos da atualidade e na maioria das outras religiões que ouvi falar – uma falha grave que pode levar ao tormento INFINITO (pense bem, INFINITO! Imagine durante 5 segundos um tormento INFINITO). Quem é o louco que quer correr esse risco?
Poucos se atrevem. Menos ainda vão fundo nessa questão, a ponto de enxergar e honestamente reconhecer algumas informações e valores morais arbitrários que nos são transmitidos como vontade divina e verdade absoluta. Essas pessoas tem um papel importante na sociedade porque contribuem para disseminar algumas ideias até então marginais, fazendo com que alcancem um público maior, se tornem mais aceitas e, eventualmente, se tornem senso comum. Tais pessoas, em grande parte, são teístas tentando achar soluções para conflitos diversos. Graças a eles, hoje a Terra já não é mais chata nem é o centro do Universo, a escravidão não é mais aceitável em nenhum contexto, mulheres não são inferiores, nem homossexuais devem ser assassinados. Tudo isso é novidade para as religiões judaico-cristãs, dominantes aqui (mas nem tudo tem o mesmo nível de aceitação ainda). Graças a pessoas honestas, que souberam reconhecer as falhas do seus sistemas de crenças e abrir mão de suas convicções (ou das convicções dos seus antepassados) quando estas já não mais se sustentavam, progredimos.

Mas a importância desse grupo de religiosos moderados, liberais ou até não-praticantes não se resume à popularização de ideias simples e óbvias. Eles são também a ligação para que as pessoas possam transitar no vasto campo entre o fundamentalismo religioso e o ateísmo com mais segurança, sem ter de enfrentar tanta pressão da sociedade como, por exemplo, medo de decepcionar os pais. "Pelo menos acredita em Deus", dizem, muitas vezes sem perceber o grau de preconceito dessa afirmação.

A principal consequência dessa maior mobilidade, a meu ver, é gerar um fluxo maior de pessoas em direção ao ateísmo do que o oposto. Mesmo que no final das contas a imensa maioria nunca se torne ateia de fato, seja qual for a razão, esse "trânsito" continua sendo bom por dois motivos:

1- Mostra que essas pessoas estão mais propensas a revisar as próprias crenças (ou parte delas); 2- Que elas tendem a buscar o bem-estar social.

Por outro lado, os religiosos mais radicais, que não se dispõem a revisar suas crenças, ficam cada vez mais distantes, comprometendo um possível (e provavelmente inútil mesmo) diálogo e frequentemente atentando contra o bem-estar coletivo, travando batalhas contra o direito à liberdade individual ou ameaçando a independência do Estado frente às religiões.

Mas, em uma linha onde a prevalência é do teísmo, o ateísmo estar em posição diametralmente oposta não faz dele uma posição radical também? Uma sociedade regida pelo ateísmo não poderia provocar danos sociais tão graves quanto o extremo oposto?

Bem, a princípio, pelo menos usando o conceito de ateísmo ao qual me referi até agora, não. Também não se fala, entre os ateus, de um "Estado ateu" e sim, quando muito, de um Estado laico de fato, ou seja, um Estado que garante a liberdade de crença mas onde as decisões são tomadas de forma totalmente independente de qualquer religião. Esse papo é batido, costumam usar como exemplo os massacres promovidos por Stalin, Pol Pot e outros governos totalitários e ateístas, mas o fato é que o ateísmo é AMORAL. Ao contrário das religiões, que têm um conjunto de princípios, dogmas, doutrinas, tradições que promovem determinados comportamentos e reprovam outros (o que muitas vezes não é consenso nem dentro de uma mesma religião), o ateísmo não diz nada sobre como as pessoas devem se comportar, logo não pode ser responsabilizado por nenhuma ação. Um ateu apenas não acredita em deuses (e equivalentes), qualquer outro traço do seu caráter é particular, então seria uma missão "meio impossível" estereotipá-los, generalizar.

Justamente por ter tal liberdade de beber de diversas "fontes morais", um ateu pode ser tão intolerante, arrogante e malévolo quanto qualquer religioso fanático, assim como pode ser caridoso, bondoso e solidário. A mensagem aqui é clara: por ser ateu (ou teísta), você não se torna pior nem melhor que alguém. São os outros aspectos da sua personalidade que definem isso.

E quanto a esses ateus que atacam e blasfemam contra as religiões?

Para mim, parece simples: em uma democracia onde há liberdade tanto de crença quanto de expressão não temos a obrigação de considerar nada sagrado e intocável, muito menos devemos ser obrigados a sermos polidos em nossas críticas (sejam elas diretas e bem argumentadas ou a simples ridicularização, o escárnio). Sabemos que a religião durante muito tempo teve (e ainda tem, em parte) um poder político imenso e os dissidentes eram silenciados. Isso parece ter tornado a religião hipersensível a críticas, e os fiéis mais fanáticos se sentem pessoalmente ofendidos com qualquer zombaria. Mas ressalto aqui que a empatia é um fator de persuasão importante, então cabe a cada um decidir se quer aproximar, fazer acordos e esclarecer desavenças, ou só afastar possíveis desafetos. Mas isso não se aplica somente aos ateus. Os próprios teístas criticam e zombam uns dos outros, e parecem concordar entre si apenas quanto às opiniões preconceituosas sobre a integridade moral dos ateus, sem nenhum embasamento. Hoje, em rede nacional, em TV aberta, você ouve acusações das mais terríveis contra ateus, associando-os a crimes hediondos[1], mesmo quando uma simples pesquisa sobre religiosidade com a população carcerária levaria por água abaixo essas acusações. Não é à toa que a Fundação Perseu Abramo constatou que aqui no Brasil os ateus são o grupo mais detestado do país, merecendo repulsa, ódio ou antipatia de 42% da população[2]. Um estudo recente da Universidade da Columbia Britânica (Canadá), em conjunto com a Universidade de Oregon (EUA), chegou à conclusão também preocupante de que as pessoas acham que os ateus, ao lado dos estupradores, são os grupos mais indignos de confiança[3].

Esse panorama é muito sério, e os ateus têm tentado se organizar para fazer algo a respeito, o que não é nada fácil devido à heterogeneidade de pensamentos. Uma das maneiras para mudar esse quadro, segundo uma pesquisa publicada no Personality and Social Psychology Bulletin[4], é fazer com que os descrentes se exponham, não tenham vergonha e não se intimidem perante a sociedade. É nesse sentido que a Out Campaign[5], promovida pelo escritor e biólogo Richard Dawkins, autor de "Deus, Um delírio", convida ateus a "sairem do armário", em uma clara referência à luta dos gays contra o preconceito. No Brasil também há movimentação, como a campanha "Eu Sou Um Ateu Brasileiro", realizada no YouTube, onde várias pessoas de todo o Brasil declaram seu ateísmo em vídeo[6], e até uma campanha com outdoors em Porto Alegre, promovida pela Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos[7]. Houve também uma tentativa desta última ser veiculada em ônibus em Porto Alegre, São Paulo e aqui em Salvador, mas a empresa contratada se negou(!) a realizar o serviço[8].

Logo, fica claro que afirmar o ateísmo não é uma rebeldia vazia, nem uma afronta às religiões, muito menos um mantra para dissipar alguma dúvida em nossa posição. É, antes de tudo, uma rebeldia muito bem justificada contra o preconceito e uma afronta a uma sociedade que faz muitos ateus se esconderem, se envergonharem, se sentirem inferiores, impuros ou até perigosos. Somos poucos, mas estamos na sua escola, no seu trabalho, na sua vizinhança, dividindo um ônibus ou até um teto com você.

Nosso mantra é apenas um apelo à honestidade e ao direito à diversidade.

Referências:

1. http://ateusdobrasil.com.br/p/1811/
2. http://www.fpabramo.org.br/artigos-e-boletins/artigos/em-nome-da-diversidade
3. http://blogs.vancouversun.com/2011/12/01/do-christians-believe-in-atheists-ubc-study-finds-believers-distrust-atheists-as-much-as-rapists/
4. http://cienciaumavelanoescuro.haaan.com/2011/05/prevalencia-percebida-de-ateus-diminui-o-preconceito/
5. http://outcampaign.org/
6. http://youtu.be/_8tTupdejm8
7. http://sul21.com.br/jornal/2011/07/primeira-campanha-de-midia-sobre-ateismo-no-brasil-e-lancada-em-porto-alegre/
8. http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/844028-empresas-barram-campanha-publicitaria-que-questiona-existencia-de-deus.shtml

Leon Sampaio é estudante do Bacharelado Interdisciplinar em Ciência e Tecnologia/UFBA, ateu, cético, humanista, mochileiro das galáxias e 94% chimpanzé.

3 comentários:

  1. Simplesmente perfeito o texto. Parabéns!

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  2. Muito bom o texto, não concordo com tudo mas obviamente não deixa de ser excelente.
    Só não entendo como um Teólogo com bacharelado em línguas bíblicas possa escrever sem ser afetado como todos os religiosos.
    Parabéns.

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